O materialismo transcendental de Alberto Caeiro

desenho-poeta-e-menino-copy (1)
Por Nathália Vital
Brevíssimas palavras sobre o ortônimo Fernando Pessoa, criador-discípulo de Alberto Caeiro

“[O poeta capaz de mentir
conscientemente, voluntariamente,
só ele é capaz de dizer a Verdade.]”

Nietzsche

Fernando Pessoa é um universo.

Através de seus tantos eus, o imortal poeta português pôde abordar em sua obra a universalidade das sensações humanas. E foi mais além: de tão humano chegou a ser divino. Gênio geminiano, não cabia em si. As mais recentes biografias atribuídas ao autor apontam muito mais de noventa heterônimos pessoanos, embora nem todos estejam propriamente ligados à Literatura. Os três heterônimos mais populares do poeta são Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos. Em carta destinada ao poeta e crítico literário Casais Monteiro, Fernando Pessoa revela: “Pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática; pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria; pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida”. 

Pessoa era diverso. Sua personalidade plural transitava entre a seriedade e o gracejo. Era alegre e triste, plácido e fervoroso. Costumava criar realidades. Era engenhoso ao ludibriar e mentia com facilidade. Criava, às vezes, personalidades fictícias para se safar de alguma situação conflituosa que o perturbasse, e parecia se divertir com isso. Mas talvez só parecesse divertido… Fernando Pessoa vivia uma angústia: a angústia da personalidade múltipla.

Segundo a estudiosa da vida e obra de Fernando Pessoa, a Prof.ª Dr.ª Ermelinda Maria Araújo Ferreira, da Universidade Federal de Pernambuco,

“A doença se insinuou na história familiar do poeta Fernando Pessoa com uma presença devastadora, exercendo um papel definitivo na construção de uma obra literária poderosa e inusitada. Sintomas do Transtorno Bipolar, já por diversas vezes relacionados pela pesquisa médica à manifestação da genialidade artística, foram particularmente constatados no caso pessoano pela crítica especializada. O próprio Pessoa chegou a realizar leituras na área buscando entender a dissociação de personalidade que o acometia. Afinal, o homem cedeu voluntariamente, e não sem sacrifício, seu lugar ao poeta, a fim de legar à humanidade o documento precioso de uma arte concebida em torno de Alberto Caeiro…”  

“Arte concebida em torno de Alberto Caeiro”, de fato. Tal afirmação pode ser certificada neste excerto de carta escrita por Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro, em resposta ao questionamento de Monteiro ao que se refere à gênese dos heterônimos pessoanos:

“(…) A origem mental dos meus heterônimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenômenos — felizmente para mim e para os outros — mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com outros; fazem explosão para dentro, e vivo — os eu a sós comigo. (…) Assim tudo acaba em silêncio e poesia… (…) Lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro — de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira — foi em 8 de Março de 1914 — acerquei-me de uma cômoda alta e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. (…)” 

Assim, reconhecendo o criador a divindade da criatura, Fernando Pessoa tomou seu heterônimo Alberto Caeiro – poeta bucólico, de um panteísmo materialista, amante da Natureza e da simplicidade – por Mestre e tratou de arranjar-lhe discípulos: fez de Ricardo Reis e de Álvaro de Campos igualmente discípulos do Mestre Zen Caeiro.

Acerca da gênese de Alberto Caeiro, revela Fernando Pessoa na mesma carta destinada a Adolfo Casais Monteiro: “Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação quase alguma, só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia avó.” 

Do texto “Notas para a Recordação do meu Mestre Caeiro”,  escrito por Álvaro de Campos quando da morte de Caeiro por tuberculose aos seus jovens 27 anos:  

“Vejo-o diante de mim, vê-lo-ei talvez eternamente como primeiro o vi. Primeiro, os olhos azuis de criança que não tem medo; depois, os malares já um pouco salientes, a cor um pouco pálida, e o estranho ar grego, que vinha de dentro e era uma calma, e não de fora, porque não era expressão nem feições. O cabelo, quase abundante, era louro, mas, se faltava luz, acastanhava-se. A estatura era média, tendendo para mais alta, mas curvada, sem ombros altos. O gesto era branco, o sorriso era como era, a voz era igual, lançada num tom de quem não procura senão dizer o que está dizendo – nem alta, nem baixa, clara, livre de intenções, de hesitações, de timidezas. O olhar azul não sabia deixar de fitar. Se a nossa observação estranhava qualquer coisa, encontrava-a: a testa, sem ser alta, era poderosamente branca. Repito: era pela sua brancura, que parecia maior que a da cara pálida, que tinha majestade. As mãos um pouco delgadas, mas não muito; a palma era larga. A expressão da boca, a última coisa em que se reparava — como se falar fosse, para este homem, menos que existir — era a de um sorriso como o que se atribui em verso às coisas inanimadas belas, só porque nos agradam — flores, campos largos, águas com sol — um sorriso de existir, e não de nos falar”.   

A Religiosidade Materialista de Alberto Caeiro 

“O meu misticismo é não querer saber.” 

De uma overdose de inspiração nascera, do deus Fernando Pessoa, aquele que viria a ser seu “mentor espiritual”. Não, definitivamente essa não é a melhor definição para Alberto Caeiro, pois para ele não havia espírito, essência ou que nome se lhe dê. Sua religião era a Realidade, e a realidade era o visível. Certa vez escrevera:

“Creio mais no meu corpo do que na minha alma,
Porque o meu corpo apresenta-se no meio da realidade” 

Um leitor ingênuo poderia questionar: “E quanto às vezes em que Alberto Caeiro se referiu à sua alma, como nos trechos: “A minha alma é simples e não pensa…”; “a nossa alma e o céu e a terra bastam-nos”; e “a minha alma é como um pastor, conhece o vento e o sol”? E eu responderia: nada mais do que “licença poética”. Caeiro está sempre a alertar o leitor para essas situações de licença presentes em sua obra.

 “Se às vezes digo que as flores sorriem
E se eu disser que os rios cantam,
Não é porque eu julgue que há sorrisos nas flores
E cantos no correr dos rios…
É porque assim faço mais sentir aos homens falsos
A existência verdadeiramente real das flores e dos rios.
Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezes
À sua estupidez de sentidos…
Não concordo comigo mas absolvo-me,
Porque só sou essa coisa séria, um intérprete da Natureza,
Porque há homens que não percebem a sua linguagem,
Por ela não ser linguagem nenhuma.”  

Na obra do Mestre Ingênuo de Fernando Pessoa, o panteísmo materialista é evidente. Escrevia com iniciais maiúsculas quando queria se referir à Natureza, ao Mundo, ao Sol, ao Universo, à Realidade, à Primavera, às Estações… de modo a denotar o seu respeito individual para com o que considerava sagrado.

Em suma, quando Caeiro menciona a Natureza como sendo alguma “entidade superior”, não é que o poeta acredite que exista alguma “entidade superior”. Na verdade ele crê nas coisas: para ele Deus não existe, porque ele nunca o viu. Para ele Deus é as flores e as árvores e os montes e sol e o luar… 

Quando o poeta diz: “só a natureza é divina, e ela não é divina…”, quer dizer, com isso, que não vê a Natureza como um deus-conjunto, uma totalidade. Vê apenas um caráter divino nas partes que compõem o todo na Natureza. Escreve, claramente: “A Natureza é partes sem um todo”.

 “Só a natureza é divina, e ela não é divina…
Se falo dela como de um ente
É que para falar dela preciso usar da linguagem dos homens
Que dá personalidade às coisas,
E impõe nome às coisas.
Mas as coisas não têm nome nem personalidade:
Existem, e o céu é grande, a terra, larga,
E o nosso coração do tamanho de um punho fechado…
Bendito seja eu por tudo quanto sei.
Gozo tudo isso como quem sabe que há o sol.”
 
Alberto Caeiro cantava a simplicidade. Afastava de si a metafísica. Para ele “pensar é estar doente dos olhos”, o que nos leva a perceber em sua obra características zen budistas e teosóficas. O próprio Fernando Pessoa fora membro da Sociedade Teosófica, assim como da Maçonaria.

Helena Blavatsky, mãe da Teosofia, registrou: “A Mente é a grande assassina do Real. Que o discípulo mate o assassino” e “Não há religião superior à Verdade”. Ainda que a Teosofia seja um ramo do Ocultismo – o que não tem muito a ver com a “essência inteiramente exterior” de Alberto Caeiro -, ela muito dialoga com “O Guardador de Rebanhos”; é temática usual do autor louvar a Realidade e o não-pensar. Não-pensar para poder ver melhor. Escrevera:

“(…) O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.
Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender (…)”

Isso, também, remete ao zen budismo. O clássico verso de Alberto Caeiro “Há metafísica bastante em não pensar em nada” é de um budismo puro. Para os budistas é de suma importância o exercício da purificação mental. Procuram liberar a mente dos pensamentos condicionados para, assim, poderem estar de fato conectados com a Realidade.  Segundo Antônio Mora (outro heterônimo do poeta Fernando Pessoa) “o budismo é um materialismo transcendental”, e não há melhor definição para a filosofia de Alberto Caeiro.

Ao criticar a filosofia, as religiões e toda a compreensão ilusória do homem acerca do incompreensível (o poeta tinha aí a sabedoria socrática do “tudo o que sei é que nada sei”), Caeiro relacionava as mazelas do mundo moderno e os desandes da sociedade burguesa à teimosia do «curioso e egóico» “homem das ciências”.  No Oitavo Poema de O Guardador de Rebanhos (eu não poderia terminar este texto sem citar esse que é, na minha opinião, o mais comovente poema do mestre Caeiro, dessas passagens poéticas que, ao serem lidas, causam-nos arrepio da alma ao estômago), Caeiro conta, a seu modo, a história do seu Menino Jesus, um menino que fugiu do céu, descendo à terra através de um raio de sol; travesso e inocente, como toda criança. Em trecho d’O Poema do Menino Jesus, escreve Pessoa: 

“(…) E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo (…)”

Após terminar a comovente história do seu Menino Jesus, que é o seu sentir poético, que é a própria personificação da poesia para Caeiro, o poeta é sutilmente cortante ao encerrar:

 “(…) Esta é a história do meu Menino Jesus,
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?”

♦◊♦

Embora não aceitasse a definição de “poeta materialista”, muitas vezes atribuída à sua pessoa, toda a obra de Alberto Caeiro é, de fato, um religare para com os sentidos e as coisas palpáveis e visíveis. No texto “Notas para a Recordação do meu Mestre Caeiro”,  Álvaro de Campos tenta convencer Caeiro de que muito há de materialismo em sua religiosidade naturalista. Caeiro, contudo, discorda veementemente, assim como discorda de que chamem-no de poeta. Afirma, referindo-se à sua obra: “Nem é poesia: é ver”.

Caeiro era, de fato, avesso às definições filosóficas. Dizia: “Eu não tenho filosofia: tenho sentidos”. Aceitava o Mistério como quem não crê no Mistério; na verdade, Caeiro nem queria saber… Mas sabia; para ele a Verdade é “a verdade que uma flor tem ao florescer, e que anda com a luz do sol a variar os montes e os vales”, e isso lhe bastava. Monge leal à Natureza, Caeiro tinha a sabedoria da flor que sabe a Primavera.